terça-feira, 14 de outubro de 2008

Insólito Transporte

Estava eu numa cidade diabolicamente sobrenatural. Uma cidade deslumbrante com andares e andares de lojas, vitrines povoadas de manequins forrados de tecidos de um luxo inédito, criações embasbacantes, jóias de fulgor sabático e semi lunático arrastando os passantes e as passantes senão à compra, a um contemplar demorado, vagaroso, empático, telepático. Após percorrer umas três quadras destes magazines: aparece o comércio popular sobre as calçadas: todo lenços coloridos, echarpes e meias, perfumes e gorros, suéter e luvas blusões e cartões.
Súbito de mim apodera-se de um invisível cansaço. Inesperado. Imprevisível. Faria rápido um gesto que parasse o primeiro táxi, o primeiro carro que por ali passasse e caravanas aos montes, em fila, mas não parava um sequer. Nenhum deles parava. Era por volta de umas cinco e meia da tarde, e no crepúsculo calmo deitavam-se alguns últimos raios de sol sobre as águas prateadas do rio, passante sob as lindas pontes. As ruas sucediam-se repletas dos habitantes que voltavam do trabalho para casa, procuravam ainda os cafés para um aperitivo antes da chegada em casa, onde jantariam certamente. Os táxis continuavam a passar em flagrante desatenção e indiferença a meus gestos. Ao cansaço anterior juntava-se agora uma exasperação, sem medo, uma angústia de não entender o porquê daquela exclusão, daquela discriminação. Idéias de perseguição política e de toda ordem de suspeitas baixavam com as quase noite no meu pânico de asfaltada pedestre. Foi quando encostou-se na calçada uma carrocinha semelhante aos carrinhos de bode que estacionando junto aos brinquedos das praças em nossas cidades do interior. Só que o tal veículo era puxado por um rapaz. Um homem, bastante forte e bastante jovem. De dentro da carrocinha saltavam um garoto de uns quatro anos e sua mãe. Os olhinhos da criança brilhavam e a boca abria-se num encantado sorriso enquanto ele abraçava cumprimentava seu transportador. Felicíssimo pela corrida, por ser ouvido e por passar o dinheiro que a mãe lhe entregara, ao seu herói. Naquela tarde a tempestade ameaçada dentro de um frágil cérebro retardou seus raios. Timidamente ousei fazer minha proposta ao condutor: consentiria ele em me carregar adulta e só. Dei-lhe meu endereço.Com a maior boa vontade acolhe minha sugestão. Não titubeia ante a distância a percorrer. Combinamos um preço razoável. Aboletei-me no banquinho de trás acomodando-me eu meio desconfiada para o que desse e viesse. Foi baixada uma cortininha de plástico protegendo-me dos primeiros pingos de vasto temporal que começava e lá partiu nosso veículo, uma bicicleta, valente, vigorosamente pedalada pelo meu Kuli surreal. Puxei pouca conversa para não dividir-lhe a atenção nem diminuir-lhe a força do impulso pelas ruas. Foi ele me informando que os táxis daquela cidade fantástica não param mais ao sinal dos passageiros no meio das ruas. Estacionam em zonas próprias previamente determinadas, dali só saindo quando ordenados pelos chamados telefônicos. E as pedaladas avançavam destemidas desafiadoras entre veículos das mais diversas marcas, em geral luxuosos como Mercedes Bens e vários outros: audis, chevrolets, cadillacs etc...
O meu chauffeur impávido descrevia piruetas verdadeiramente acrobáticas entre e sob os enormes faróis passando entre aqueles imensos veículos como uma enguia sinuosa e cegamente destemida.
Senti um ligeiro pânico de que os motoristas dos grandes carros sentissem-se provocados e nos liquidariam tranqüilos se assim decidissem. Porém nada de parecido aconteceu. Contemplavam-nos tranqüilos. Deixavam-nos passar indiferentes. Depois de subidas algumas grandes avenidas, cruzamos um cem números de ruas e ladeiras todas intimidantes atravessamos o último aqueduto alcançando a beatificação. Ao parar na final pracinha de frente ao meu hotel. O alívio meu era tão grande que sem saber se chorava de gratidão acabei rindo às gargalhadas ao pagar meu transportador. Absolutamente insólito no seu método, louco e varrido na sua provocação a grandes veículos. Mas o divertimento sobrepujara o medo e o inesperado sobrepujara o pânico. Muito mais tarde, depois, ao me lembrar da aventura uma reflexão afastada pensei: esse rapaz forte, jovem assume alegre, voluntário a condição de um bode? De um cavalo? Até um boi? Em pleno século XXI?
Transporte ecológico, dissera-me ele e repetiram-me algumas pessoas que era isso mesmo muito naturalmente, transporte ecológico.
Sei não, com tanto progresso, tanta moderna sofisticação, tanta criação, tanta invenção, rapaz tomar voluntariamente lugar de animal?
Será avanço ou regressão?
Muita força física – mas também implícita boa dose de gozação.